A VIDA DE UM PM DE SÃO PAULO; REALIDADE CRUEL
quarta-feira, 9 de janeiro de 2013
Relato de um PM By Eduardo Roberto e Gabriel Vituri;
Ilustrações por Juliana Lucato O belo ano de 2012 foi coroado por uma, vamos
dizer assim, quizila entre a polícia e o PCC. Mais de uma centena de policiais
assassinados, além de criminosos e trabalhadores levando bala a partir do
segundo semestre. Após nossa série Exame do Toque de Recolher, os meninos
Eduardo Roberto e Gabriel Vituri encontraram um policial superafim de dar um
depoimento sobre o que anda acontecendo. Ele obviamente pediu anonimato. Prenda
o fôlego e mergulhe nesse relato que faz o The Wire parecer um conto de fadas.
Sou soldado da Polícia Militar e, se eu me identificar, sou expulso. Trabalho
na área central da cidade, no coração de São Paulo; lá é um dos redutos do PCC.
Tenho oito anos de profissão: já trabalhei na zona sul, na favela de
Heliópolis, e fiquei a maior parte do tempo na Força Tática. Hoje a gente passa
pela pior situação da polícia, pior até do que em 2006, quando aconteceram os
atentados. Naquela época, nos atacavam em serviço, sabíamos quem era o inimigo
e íamos atrás deles. Havia rádio, comunicação; a gente chamava apoio, apareciam
o Águia, a Rota, todo mundo. Hoje, não. Você está no horário de folga, junto
com a família, e a maior preocupação é protegê-los. O Estado fechou os olhos. A
primeira comunicação extraoficial que a gente recebeu foi depois das eleições,
quando mais de 40 policiais já tinham morrido. Em setembro foi quando houve o
estouro. Antes era um por semana ou a cada quinze dias, e aí começou a ser
diário. Toda noite um policial morria. Antes, em agosto, a gente sentia que
alguma coisa acontecia. O governador falou que não existia, o secretário de
segurança também, e os oficiais negavam a existência dos atentados. Aí, depois
do segundo turno das eleições, um oficial veio e nos disse: "Isso está
mesmo acontecendo, teve escuta telefônica provando os ataques".
Descobrimos que, em agosto, a Polícia Civil e o Ministério Público tinham
interceptado ligações. Em 5 de agosto, prenderam o Piauí, um dos chefes do PCC.
A Polícia Civil sabia que havia sido dada a ordem pra executar policiais, mas
não fomos informados. A Civil informou o Estado, e isso foi parar no alto
comando; o secretário sabia, o governador sabia. Nós sabíamos que algo estava
acontecendo, mas não exatamente o quê. Foi diferente de 2006, foi pingado.
Morreu gente da administração, da corregedoria, não era coisa de um batalhão
específico. Foi ocasional. O salve era geral mesmo, pra atingir todas as
esferas da polícia. O Alckmin vai trocar o secretário, o comando, mas não vai
resolver. A tropa está com medo. Você não sabe quem é o inimigo. O cara vem e
te mata sem menção de roubar nada, é só pra executar, sem mais nem menos, sem
perguntas. O policial está com medo, teve que mudar a rotina. Antes a gente ia trabalhar
fardado, pra não pagar ônibus; não recebemos vale transporte, só podemos viajar
de graça com farda. Logo, aumentou o gasto do policial. O que o Estado faz?
Existia uma gratificação, mas foi cortada. A gente teve queda no salário de
20%. Então, 70 mil policiais, ou seja, quase 100% dos que estão na ativa,
perderam de 10% a 20% do salário. Nessa fase mais difícil, diminui o salário e
aumenta a jornada de trabalho. Aumentou o efetivo pra dar sensação de
segurança? Não, aumentou o horário de trabalho, o efetivo é o mesmo. A tropa
está descontente, passando necessidade. Não temos viaturas o suficiente, e as
bases comunitárias ficam lotadas porque não tem como rodar. Os paulistanos se
estressam porque ficam quatro horas por dia dentro do carro. Mas ele tem
ar-condicionado, direção hidráulica, vidro elétrico, um rádio; já o policial
passa 12 horas por dia dentro do carro e não tem nada. Tirando a Rota, a Força
Tática, o resto tem carro popular pra trabalhar, um Corsa Classic, estreito. Se
eu sou tratado como lixo, vou tratar como lixo. O ensinamento que eu tive, vou
repassar. No meu quartel, existem os banheiros dos oficiais e civis, e o dos
"traças". Se eu sair da polícia, vou usar o mesmo banheiro que o
oficial usa. Mas hoje uso um banheiro lá no subsolo. Ou seja, a polícia está
abaixo do civil. Dentro da minha corporação, sou inferiorizado se comparado com
quem está na rua. O oficial não sai na rua, ele supervisiona. Dos 96 que
morreram em atentados, todos foram traças. Porque se morrer um oficial, vai dar
repercussão. Morreu o traça? É só mais um, é número, e a gente sente isso. O
oficial começa a carreira com um piso de R$ 5 mil. Eu, no fim de carreira, não
ganho isso. Eu vou me aposentar com R$ 4.800. Atendemos quinze, vinte
ocorrências por noite. A maioria não é ocorrência de polícia. É perturbação da
ordem, coisas que são da Prefeitura, da Lei do Psiu, do 156. O que é
administrativo não é da polícia, e isso sobrecarrega a gente. Às vezes eu nem
consigo jantar, e aí você entra em uma padaria e pede uma coxinha, vem alguém e
te aponta o dedo. Em 12 horas a gente não consegue parar sequer uma hora pra
jantar, isso não existe. Não existem direitos humanos pra policiais. É difícil
um policial conseguir estudar, porque não tem escala compatível. Atividade física?
Podem reparar, os policiais na rua estão todos gordos. Os oficiais, todos
magrinhos, vão pra academia. Mesmo quem está na rua, se é tenente, tem uma hora
de atividade física dentro do tempo de serviço. Se você leva a farda na
mochila, ela não pode chegar amassada. O ladrão, se você prende, recebe pena e
responde em liberdade. Eu, por uma bota suja, posso ficar dois dias preso. A
gente usa um cinturão que prejudica a nossa coluna. Na Polícia Federal ou na
polícia de outros estados, é coldre na perna, de nylon, camiseta polo. Nos
Estados Unidos, no Japão, lá é muito bonito, o pessoal respeita a polícia, é
tolerância zero. Se o cara fez menção de atirar em você ou segurou uma faca,
você pode atirar nele. Aqui eu ando de calça social e camisa, só me falta a gravata.
A nossa farda não é operacional, não pra correr atrás de bandido. A farda da
Rota, do Choque, é melhor — e eles atendem menos ocorrências que a gente. Aqui
nós temos duas pistolas. O nosso armamento não é igual ao do bandido, é
inferior. A gente está em desvantagem na roupa e no armamento. Tudo isso afeta
a atividade na rua. Por que a população gosta da Rota? Cada equipe fica oito
horas na rua. São três horas de atividades físicas e depois as oito de
patrulhamento, numa Hilux, com quatro pessoas dentro — cada um em uma função —,
com um .30, que é um fuzil leve, um calibre 12, um escudo, capacete balístico,
equipamento completo. Ou seja, é claro que eles vão te atender bem, vão
enfrentar melhor o bandido. A Rota é mais precisa, é mais redonda. Como a nossa
tropa está estressada, exausta, não dá pra fazer uma ocorrência bonita. Tem
policial mudando de casa, fugindo pra não ser alvo. Com o cansaço, ele vai
descarregar a pistola e não vai acertar nenhum tiro. Está tendo grupo de
extermínio, claro. Não tenho nada que prove nem conheço policial que tenha
feito, mas esse monte de gente que morre na periferia, em ponto de drogas, pode
ter mesmo relação com policiais. A partir do momento em que você se revolta e o
Estado vira as costas pra você, é a sua família que está ameaçada. Você vai
cobrar. Uma pesquisa mostrou que 41% das pessoas apoiam que policiais matem, e
os inocentaria se isso fosse a júri. Os homicídios contra policiais caíram, e
não foi porque o Estado tomou alguma ação, e sim porque eles vestiram a camisa
e estão indo pra cima. Isso é correto? Não. A polícia tem que prender, e não
matar. Ou seja, a polícia perdeu a linha. O comando e o governo não têm
controle sobre a polícia. Os policiais não se controlam mais. Hoje, rola uma
aflição dentro da viatura, porque você não sabe o que seu companheiro vai
fazer. Eu tive um parceiro que foi executado nos últimos combates. Ele
trabalhava no extremo sul. Invadiram a casa dele, mas ele conseguiu fugir e
pediu transferência pra outro batalhão. Em seguida, saiu do trabalho e foi
morto. Ou seja, não resolveu o problema. O nome dele é o mesmo, o RG, o
advogado. É fácil descobrir onde ele está. Existem informações vendidas, e tem
gente do PCC dentro da polícia. Não tem gente da polícia dentro do PCC, mas
qualquer um, sem ficha criminal, pode fazer concurso, entrar e vender
informação, e a polícia não consegue investigar isso, faz vistas grossas. Quem
sofre são os bons policiais. E quem é o “bom policial”, que não concorda com
isso de sair matando, acaba discriminado. Esse cara aí talvez não segure a
história dos outros, e sobra pra ele também. Se tomar atitude, morre. Se deixar
de tomar, é considerado conivente e fica preso. O policial não tem mais pra
onde correr. Quem deveria proteger sequer consegue se autoproteger. A população
está cobrando, e não é videogame, não tenho várias vidas. Um promotor deu uma
entrevista dizendo que o PCC está dentro da Fundação Casa, e disse que há
rebeliões comandadas de fora. Existe o PCC mirim, na base, o aviãozinho, o
vapor. Mas ele não vai ficar preso. O PCC já alicia os menores, já faz escola.
No Rio, é por território. Em São Paulo não, é espalhado. Eles estão em tudo. Um
cara que foi preso por lavagem de dinheiro com o PCC e roubo a banco, foi
eleito vereador pelo PSDB. O PCC não quer viatura na biqueira, não quer o
policial enchendo o saco dele. Se tiver homicídio, vai ter mais policial na
área. Se hoje a coisa está mais organizada, é porque o PCC colocou ordem, e não
o Estado. Não tem ocorrência dentro de favela, ninguém chama viatura. A
sentença é ali na hora. O negócio cresceu e invadiu o espaço da polícia. Se o
Estado quisesse prender bandido, você acha que a viatura iria ser branca,
vermelha e preta, com uma árvore de natal em cima? É tudo pra espantar. O
policial que começou a ir lá prender começou a ser perseguido pela corporação.
Vai ficar a pé, sem viatura, em horários ruins. Se não tem registro de roubo,
não tem estatística. Se ninguém trabalhou o mês inteiro, aquele capitão foi
perfeito. Se não tem B.O., não tem ocorrência. Se começa a trabalhar, enche o
saco. A instituição é corrupta. Entre as subprefeituras de São Paulo, por
exemplo, só uma não tinha comando militar, e aí o cara caiu, porque puxaram o
tapete. É uma máfia. Pense numa espinha: se você é pressionado dos dois lados,
vai explodir e espirrar pus e sangue pra todo lado. É o que está acontecendo
agora. A polícia cobrou de um lado, o PCC de outro, o policial explodiu. O
Comando está cobrando: quem trabalha vai ser morto. No estatuto do PCC está
escrito que se a polícia mata um bandido, morrem dois policiais. Pra virar
gerente no crime, precisa matar um. Assim é a promoção, e o Estado é conivente.
KARLÃO-SAM, com informações do Blog Cachorro Louco.